Como Lula desenha sua coalizão para o terceiro mandato
Os 60 milhões de votos obtidos pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva não asseguram a ele tranquilidade para governar, a partir de 2023. Na largada, no pronunciamento já como eleito, o petista reafirmou que o próximo mandato — seu terceiro como presidente — “não será um governo do PT”.
Presidente nacional do partido, Gleisi Hoffmann iniciou, depois de 2 de outubro, conversas políticas com os dirigentes do MDB, Baleia Rossi, do PSD, Gilberto Kassab, e do União Brasil, Luciano Bivar. Além das três legendas, o grupo de Lula terá que construir uma coalizão ampla que acene também para siglas do centrão, como o Republicanos, ligado à Igreja Universal do Reino de Deus, e buscar defecções no PL e no PP.
Dez partidos integraram a coligação de Lula na campanha eleitoral: PT, Psol, Rede, PSB, PCdoB, PV, Agir, Avante, Pros e Solidariedade. Juntos, elegeram 122 dos 513 deputados federais. Só o PL, partido de Jair Bolsonaro, terá 99 parlamentares. Lula precisa contar com o apoio de ao menos 308 parlamentares, por exemplo, se quiser aprovar emendas constitucionais (três quintos das cadeiras da Câmara).
Neste texto, o Nexo traz análise de cientistas políticas, cujas pesquisas focam nas relações entre Executivo e Legislativo, sobre a formação da coalizão de Lula e sobre a importância da eleição das presidências da Câmara e do Senado — disputas que ocorrem em fevereiro, quando começa a nova Legislatura.
Quem pode entrar na aliança
Partidos que já fizeram composições com o PT no passado, como o MDB e o PSD, devem constar como prioridade para negociações sobre a montagem de uma coalizão, disse ao Nexo a cientista política Andréa Freitas, professora da Unicamp e coordenadora do Núcleo de Instituições Políticas e Eleições do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
Além disso, segundo ela, manter o diálogo com o União Brasil é crucial porque, caso haja a cogitada fusão da sigla com o PP, ele se tornará o maior partido do Congresso, com 106 deputados federais. O presidente do União Brasil, Luciano Bivar, que em 2018 deu a legenda do PSL para Bolsonaro disputar a eleição, já afirmou que não há hipótese de seu partido fazer oposição a Lula.
“A coalizão eleitoral do Lula, embora seja numericamente ampla em termos de número de partidos, não reúne uma base legislativa que garanta a ele uma maioria mínima. Certamente será um governo de coalizão. Para ter uma atuação mais tranquila, mais segura, o governo fará movimentos no sentido de trazer partidos que já foram seus aliados anteriormente e que não adotaram posturas de distanciamento na campanha presidencial como é o caso do PSD, e do MDB”
Segundo a cientista política Magna Inácio, professora da UFMG, MDB e PSD devem se sentir atraídos a compor a frente ampla do próximo governo e as pontes de diálogo são facilitadas pelo fato de já terem integrado coalizões petistas no passado.
A coalizão pressupõe que o partido tenha cargos no governo, no primeiro escalão, e que a direção partidária dê anuência para uma colaboração oficial da legenda com o governo. Além disso, o futuro governo Lula poderia construir também parcerias legislativas, a partir de acordos que envolvam a sucessão nas presidências da Câmara e do Senado e de interesses partidários pontuais.
“Um outro movimento do governo, em que certamente o [Geraldo] Alckmin tem o papel importante, é o de diálogo e a interlocução com os partidos de direita democráticos, que fazem um jogo institucional e operam dentro do campo institucional com respeito às suas regras”, afirmou a professora da UFMG.
Ainda segundo Magna Inácio, esse tipo de aliança legislativa auxilia na estabilidade do governo. “Essa articulação com essa direita democrática, ainda que se mantenha no campo da oposição, é fundamental para reduzir eventual influência de grupos mais extremistas ou de partidos que têm assumido uma posição mais radical.”
Pelas contas da cientista política Andréa Freitas, uma coalizão de Lula que incluísse oficialmente MDB, que no primeiro turno teve uma aliança formal com PSDB e Cidadania em torno de Tebet, PSD e União Brasil (se houver a fusão com o PP) alcançaria 292 cadeiras na Câmara. Ainda assim, essa não seria uma maioria folgada para Lula, e a participação oficial desses partidos no governo, como o União Brasil, exige uma negociação complexa.
É nesse sentido, segundo disse aprofessora da Unicamp, que a abertura de diálogo com o Republicanos, partido do centrão que elegeu 41 deputados, é crucial. O presidente do partido, Marcos Pereira, tem boa ligação com o PT e já tem sinalizado disposição em manter conversas com o futuro governo. O Republicanos é um partido vinculado ao neopentecostalismo e à Igreja Universal do Reino de Deus (IURD). Na quinta-feira, o bispo Edir Macedo, que atuou fortemente a favor da reeleição de Bolsonaro, gravou um vídeo em que fala ter sido feita a “vontade de Deus” nas eleições, com a vitória de Lula.
“Ele [Lula] se candidatou, o povo que votou. E ele ganhou, e acabou. Ele, supostamente, ganhou segundo a vontade de Deus. Mas quem ganhou fomos todos nós. Todos os que creem, todos que vivem pela fé.”
A fala do bispo foi captada como mais uma sinalização favorável ao futuro governo. É muito importante ter uma base parlamentar aliada com alguma folga, acima de 307 votos, sustenta Freitas. “O MDB e o União Brasil seriam duas portas importantes para o futuro mandato de Lula”, afirmou a professora da Unicamp.
Ainda que o MDB seja um partido complexo e fragmentado, a esperada entrada de Tebet no governo Lula facilitaria, segundo Freitas, a negociação oficial com o governo. “Seria uma composição mais natural”, afirmou a cientista política. A dificuldade maior para uma composição com a federação do MDB, na opinião da professora, é o PSDB, que foi adversário político do PT por décadas, desde a redemocratização. No entanto, obstáculos podem ser removidos, observa, até por conta de posturas de quadros do PSDB a favor de Lula.
Já o PSD de Gilberto Kassab, na visão de Andréa Freitas, é um partido que pode aderir mais facilmente a um futuro governo Lula, por conta de sinalizações já dadas pelo presidente da legenda, que pregou a neutralidade no segundo turno. “Ainda que tenha tido papel dúbio, o PSD é um partido semelhante ao MDB: facilmente se coligaria a um futuro governo, porque não terá espaço fora dele.”
A eleição na Câmara dos Deputados
O Brasil é um país bicameral, ou seja, as propostas legais precisam ser aprovadas pela Câmara dos Deputados, com 513 cadeiras, e pelo Senado, com 81 cadeiras.
A construção da coalizão e da base de apoio parlamentar do próximo governo Lula está diretamente ligada à maneira como o PT vai conduzir a sucessão para a presidência da Câmara, segundo as cientistas políticas ouvidas pelo Nexo. São os presidentes das casas legislativas que ditam a pauta e definem o ritmo das votações.
O atual presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), é o principal líder do centrão hoje. O centrão é um grupo de parlamentares de diversos partidos que se unem para aumentar o poder de barganha com o governo, conferindo apoio ao Executivo em troca de acesso privilegiado a cargos federais e ao orçamento público — no governo Bolsonaro, foi atendido principalmente pelo “orçamento secreto”, sistema de distribuição de verbas pouco transparente.
O parlamentar se alinhou ao bolsonarismo e garantiu que nenhum pedido de impeachment contra o presidente prosperasse. Lira foi o primeiro representante de uma instituição a fazer um pronunciamento oficial reconhecendo a vitória de Lula e parabenizando o petista.
“As presidências da Câmara e do Senado são recursos importantes na construção de coalizões, sejam elas de governo, sejam elas Legislativas. São duas posições extremamente importantes e atrativas na negociação com os partidos”, disse Magna Inácio.
Lira, segundo a professora da UFMG, “fez uma sinalização clara, com uma postura mais institucional, ao reconhecer a vitória de Lula no último domingo”, inclusive com a defesa dos resultados eleitorais, de caráter irrevogável, afastando qualquer adesão a rupturas institucionais que pudessem ser promovidas por radicais bolsonaristas.
Por ser um ativo central nas negociações, Inácio acha que Lula não deve indicar candidato próprio para a presidência da Câmara, o que fecharia oportunidades na montagem da coalizão. “O momento da transição vai ser um momento muito importante de mapeamento de compromissos com lideranças congressuais, principalmente quais são as agendas centrais para o governo na sua fase inaugural.”
Ser a principal liderança do centrão hoje, com poder, é o trunfo de Lira, afirmou Magna Inácio. No entanto, ela acha possível que o deputado queira “construir um possível diálogo e eventualmente uma aliança com Lula para sua candidatura”. Caberá a Lula avaliar os movimentos de Lira e sua capacidade de cumprir compromissos críveis.
Segundo Andréa Freitas, a melhor jogada para Lula seria não reeleger Lira, mas também não seria inteligente se o futuro presidente se posicionasse abertamente sobre a disputa na Câmara. “O fato de Lira ter sido o primeiro a reconhecer o resultado eleitoral e a parabenizar o Lula, e falar sobre estender a mão, mostra que ele reconhece a importância do presidente na eleição da Mesa; ele está se colocando como alguém que não vai fazer oposição ao governo”, conclui. Se Lula fizer movimentos de veto à candidatura de Lira, as consequências poderão ser negativas, observa Freitas.
“Talvez a melhor maneira de organizar o jogo seja fingir que não está jogando. Ou fazer isso de maneira menos explícita possível. Porque numa eventualidade de Lira ganhar a reeleição, a sinalização que ele deu a Lula é positiva para o futuro governo. É melhor não comprar um inimigo que ganhou muito poder nos últimos dois anos, em especial por conta do controle do orçamento secreto, que não se sabe se continuará ou não, mas dá a Lira capacidade muito grande de articulação com os parlamentares.”
Para a cientista política, é óbvio que o PT não deve apresentar um nome à presidência da Câmara, e nem ao Senado. “Isso seria uma sinalização interessante da composição ao centro, de que será um governo amplo.” Lula terá que aprovar medidas relevantes com a ajuda do Congresso, sobretudo as que exigirão repactuações no orçamento, e o presidente eleito não conseguirá fazer isso se tiver um oposicionista na presidência da Casa e uma coalizão fraca, disse Andréa Freitas.
No entanto, há algumas possibilidades no caminho para o futuro governo, que não passam pela reeleição de Lira. Uma delas é compor com o União Brasil, ou com o Republicanos. Luciano Bivar já deu a senha: quer ser o próximo presidente da Câmara. Mas há também parlamentares da base de Lula conversando com o presidente do Republicanos, que pode aderir formalmente a uma coalizão do futuro governo.
A eleição no Senado Federal
A escolha do próximo presidente do Senado também é peça importante no xadrez da coalizão. Se a disputa na Câmara pode atrair partidos como o União Brasil e o Republicanos para a órbita de Lula, a chave para integrar o PSD de Kassab na coalizão está no Senado. Uma das exigências do presidente do PSD para apoiar o futuro governo Lula é assegurar que o mineiro Rodrigo Pacheco continuará no comando da Casa.
O que pode ocorrer, no Senado, é um embate com o MDB, que tem entre seus quadros Renan Calheiros (AL). O senador já presidiu a Casa e quis voltar ao comando do Senado algumas vezes, inclusive em embates com Simone Tebet, que se tornou a principal aliada de Lula no segundo turno. A questão no Senado, no entanto, teria um equacionamento mais fácil caso o MDB seja contemplado com maior representatividade no primeiro escalão.
Kassab, no entanto, já deixou claro que quer também cargos no governo e a garantia de que Lula terá um bom relacionamento com governadores do PSD eleito, o que inclui Tarcísio de Freitas (Republicanos), o ex-ministro bolsonarista que vai comandar o estado de São Paulo. O que está no horizonte seria uma possível migração de Freitas para o partido de Kassab, que não esconde o desejo de trabalhar o nome do futuro governador de São Paulo para a Presidência da República.
As agendas prioritárias
Formar uma coalizão ampla, com folga, como observam André Freitas e Magda Inácio, é relevante porque o debate sobre o orçamento e a bomba fiscal a partir de 2023 são os temas prioritários que o governo Lula terá que enfrentar. Tanto é verdade que Lula autorizou seus emissários – o coordenador da equipe de transição, Geraldo Alckmin, e o senador Wellington Dias (PT-PI) a iniciarem conversas com o relator do orçamento, o deputado Marcelo Castro (MDB-PI). A reunião ocorreu na quinta-feira (3).
O principal desafio do próximo governo, na visão da professora Andréa Freitas, é “a manobra orçamentária que vai precisar ser feita para garantir o novo Bolsa Família com o adicional para filhos até 6 anos, e o reajuste do salário mínimo”. Essas duas promessas, acrescenta ela, foram o foco da campanha eleitoral na reta final da disputa. “Garantir esses recursos do orçamento de 2023, sem interrupção, implica começar a governar antes de sentar na cadeira. Tudo isso tem que ser aprovado ainda em 2022.”
A primeira possibilidade, já anunciada pela equipe de transição, seria a chamada PEC [Proposta de Emenda Constitucional] da transição, que autorizaria gastos extras, fora do teto. Ou seja, será um árduo trabalho para assegurar pelo menos 308 votos na Câmara e 49 no Senado.
Com maioria simples, o governo não conseguirá aprovar qualquer alteração constitucional, com a revisão do teto de gastos. E é por isso, disse Andréa Freitas, que o futuro governo Lula assume a necessidade de negociar com o centrão. “Dificilmente alguém vai governar sem o apoio de parte do centrão. Ou Lula ou qualquer outro que tivesse sido eleito.”
“A urgência do governo Lula é como lidar e como contornar a bomba fiscal. Parte disso envolve a decisão sobre o orçamento secreto, de se entender o peso desse orçamento dos gastos discricionários, adotar um outro formato que permita ao executivo federal usar esses recursos na construção de políticas públicas mais consistentes e mais alinhadas às necessidades da administração pública federal, e não a sua pulverização”, diagnostica Magna Inácio.
O governo Lula, para a cientista política da UFMG, terá que encontrar um meio termo sobre o orçamento secreto. “É difícil pensar na reversão dessa participação dos parlamentares na alocação de recursos. Num primeiro momento, eu acho que uma solução intermediária é o que vai ser possível para um governo que precisa reorganizar as bases de financiamento de políticas públicas e algumas políticas públicas estratégicas.” Esse debate fiscal, acrescenta Inácio, deverá desembocar, obviamente, na revisão do teto de gastos, o que é feito por emenda constitucional. Ou seja, sem maioria qualificada (três quintos) não se faz nada no Congresso.
Além da questão orçamentária, algumas reformas que já estavam em fase de apreciação, como a tributária e a administrativa, podem ganhar vida no Congresso, mas isso ocorrerá, segundo Magna Inácio, mais por iniciativa de parlamentares do que do governo federal. Ainda que dependa da maioria para conduzir medidas orçamentárias mais ousadas, pontua, Lula adotará um conjunto de ações a partir de decisões unilaterais do Executivo por meio de decretos.
Os cargos no primeiro escalão
A montagem de um governo de coalizão exige cuidados na composição dos ministérios, segundo disse a professora Andréa Freitas. O PT, disse a professora, deverá assumir a Casa Civil, porque isso sinaliza uma espécie de coordenação política do governo.
Já no campo econômico, haverá duas pastas centrais: a Fazenda (Economia) e o Planejamento. O partido de Lula, avalia, deve assumir uma das pastas, mas outra deverá ser entregue a partidos da coalizão, em outra sinalização importante e absolutamente fundamental, segundo ela, para assegurar a presença do MDB e do PSDB na coalizão.
Num terceiro patamar estariam as pastas da Saúde e Educação, considerados centrais para governos com compromissos e fortes agendas sociais, como é o caso de Lula. Aqui, mais uma vez, na opinião da professora, o PT precisará abrir mão de uma das pastas. Simone Tebet é vista como uma das possibilidades da Educação, ainda que o ex-ministro e ex-prefeito Fernando Haddad seja um nome vinculado à área. O ministério da Infraestrutura também é uma área importante, com o maior volume de investimentos públicos, o que costuma atrair partidos como o MDB ou até mesmo o PSD, observa a cientista política.
É importante, ainda, que uma coalizão respeite e leve em conta agendas prioritárias de cada partido. Neste sentido, afirmou, seria natural que a Rede, por exemplo, ocupasse a pasta do Meio Ambiente, ou com Marina Silva ou com um nome indicado por ela. “Os partidos têm preferência por determinados temas, de acordo com a sua agenda política. Até meados de dezembro devemos ter um bom mapa do que será esse próximo governo”, afirmou Andréa Freitas.